Bom dando continuidade, mais uma parte da minha iniciação científica
Faz frio em São Paulo,
pra mim ta sempre bom
Eu to na rua de bombeta e moletom
Din din din rap é o som que
emana dum opala marrom
E aí? Chama Guilherme, chama Bane,
Chama o Dinho e o Kim
Marquinho, chama o Éder
Vamo ai, se os outros mano vem
Pela ordem tudo bem, melhor,
Quem é quem no bilhar, no dominó
Nesse trecho um aspecto do lado bom da favela, os companheiros, aqueles que se chamam de “mano”. Esse tratamento, nas palavras de Maria Rita Kehl, “não é gratuito”, é algo que possui a sua simbologia dentro do universo da linguagem da periferia, e, por conseguinte, na linguagem do hip hop, que procura desfazer os discursos de dominação onde existe um subjugado e um superior, como afirma a psicanalista
"O tratamento de mano não é gratuito. Indica uma intenção de igualdade, um sentimento de fratria, um campo de identificações horizontais, em contraposição ao modo de identificação/dominação “vertical”, da massa em relação ao líder ou ao ídolo. As letras são apelos dramáticos ao semelhante, ao irmão".
No trecho seguinte, o outro lado, aqueles moradores da favela que por motivos declarados na letra se desvirtuaram, entraram no caminho do consumo de drogas
Colou dois manos, um acenou pra mim [...]
Ei Brown, sai fora, nem cola,
Não vale a pena dá idéia pra esse tipo aí
Ontem a noite eu vi na beira do asfalto,
Tragando a morte, soprando a vida pro alto
[...]
Veja bem ninguém é mais que ninguém, veja bem,
veja bem, eles são nossos irmão também
Mas de cocaína e crack, uísque e conhaque,
Os manos morrem rapidinho sem lugar de destaque
Na parte da narrativa transcrita acima existe um diálogo entre Mano Brown e Ice Blue sobre um terceiro “mano” que não merecia sua confiança por ser um viciado. Brown em resposta afirma que não ocupa um papel de julgador, embora, não negue que essas atitudes destroem a integridade do indivíduo. O trecho traz mais algumas referências a elementos religiosos sob o ponto de vista estrutural do discurso, da linguagem, nas falas de complacência e igualdade (ninguém é mais que ninguém, eles são nossos irmão também), que remetem aos conceitos religiosos de aceitação, perdão, igualdade. O que se pode enxergar até esse momento é um dos elementos que cria a cumplicidade dentro do ambiente da periferia expresso no discurso
"Um discurso moral- pontuado por conhecidas imagens e símbolos religiosos que evoca valores comunitários, compartilhadas dúvidas existenciais sobre o sentido da vida e a banalização da morte".
Nesse trecho, também, é possível fazer um recorte sobre existência ainda que de forma implícita, da relação dos integrantes do grupo com o tráfico e consumo de drogas. As posições sobre o assunto são divergentes, no entanto, como já foi explicitado acima, é algo difícil de desvincular do cotidiano da periferia e do rap, que é uma espécie de crônica musicada do ambiente periférico.
Em depoimentos os rappers costumam dizer que se sente como uma fronteira, realmente, entre a polícia e o tráfico, eles são contra o crime, mas muitos que estão nele são pessoas que conhecem desde pequenos, muitos cresceram juntos. Além disso, a ação policial não é o melhor dos exemplos dentro da periferia. Comumente não existe o conflito direito com os traficantes, o respeito é o sentimento prezado, o mesmo não ocorre no relacionamento com a polícia .
Por outro lado, o comportamento apresentado nas estrofes seguintes é “o politicamente correto” afirmado acima pelo jornalista Mário Marques, através de um exemplo de degradação, os enunciadores (Mano Brown e Ice Blue) desse discurso deixam claro o posicionamento adverso em relação ao consumo de drogas.
Você fuma o que vem entope o nariz
Bebe tudo que vê faça o diabo feliz
Você vai terminar tipo o outro mano lá
Que era um preto tipo A
Mó estilo de calça kalvin klein tenis puma eh
Um jeito humilde de ser no trampo e no rolê
Curtia um funk jogava uma bola
Buscava ah preta dele no portão da escola
Exemplo pra nóis mó moral mó ibope
Mas começo cola com os branquinho do shopping
Mano outra vida outro pique
Só mina de elite, balada vários drinque,
Puta de butique, toda aquela porra sexo sem limite.
sodoma e gomorra
Faz uns nove anos,
Tem uns quinze dias atrás eu vi o mano
Se tem que ver pedindo cigarro pros tiozinho no ponto
Dente tudo zuado, bolso sem nenhum conto
O cara cheira mal sente medo
Muito loco de sei lah o que logo cedo
Agora não oferece mais perigo viciado, doente,
fudido, inofensivo
Nessa parte da letra estão inseridas três críticas, ao consumo de droga, ao consumismo desenfreado, e ambos propiciados pela aproximação do “Preto tipo A” com os “branquinhos do shopping”. Assim existe a posição contrária a inserção do “mano” da periferia no circuito mercadológico da classe média e alta que o subverte, o transforma em um “neguinho”.
"O apelo do consumo, do qual os branquinhos são os protagonistas, é uma tentação e sucumbir a ela pode rebaixa-lo da classe A, do seu jeito humilde de ser, para a soberba da ganância e da cobiça. A insistência cínica da publicidade que se impõe sem peias num país miserável".
Constrói-se aí uma crítica aos meios de alienação utilizados pelas classes detentoras do poder, uma tentativa de reverter tudo que os enunciadores buscam através da narrativa presente nos raps - propiciar uma emancipação do indivíduo (negro e morador da periferia) através autoconhecimento e autovalorização. O último trecho deixa claro essa intenção de manipulação que as classes mais altas possuem (agora não oferece mais perigo viciado [...] inofensivo) . A manipulação e alienação promovidas por essa parcela da sociedade têm justamente a função de evitar o “efeito colateral” que o próprio sistema cria, que nada mais são que estes indivíduos pensantes da periferia, “os cronistas do gueto”.
Quanto à presença de elementos religiosos nesse trecho, tem-se aí a figura do Diabo, simbolismo de uma situação limite, da passagem da fronteira do inferno. Nessa parte existe a continuidade da exposição do lado ruim do ambiente periférico, aqui representado pela “tentação”, mais um termo de simbolismo religioso, aos luxos oferecidos de maneira mal intencionada pelos “branquinhos”.
Na seqüência a narrativa muda o cenário sem deixar a crítica ao consumismo, o bombardeio diário das publicidades. A ostentação daquilo que os garotos da periferia foram ensinados a ver e desejar e parar por aí. A partir daí vem a escolha, escolha musicada e cantada por Afro-X em outra música dos Racionais “O sistema limita a nossa vida de tal forma que eu tive que fazer a minha escolha sonhar ou sobreviver...porém o capitalismo me obrigou a ser bem-sucedido..em busca do meu sonho de consumo procurei dá uma solução rápida e fácil para os meus problemas: o crime”.
Notas
Bombeta: boné.
KEHL, Maria Rita. Fratrias Órfãs. Disponível em: Geocities:
Grifo da autora.
NOVAES, Regina. Hip-hop: o que há de novo.Proposta: Revista Trimestral de Debate da FASE. Rio de Janeiro: FASE (Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional), n.90, p.66-83, nov.2001. p.71
Informações retiradas de depoimentos de Edy Rock (Jornal da Tarde 2/12/97); Mano Brown (Caros Amigos Especial 3) e MV Bill (Revista Democracia Viva, nov/fev 2001) transcritos em:
KEHL, Maria Rita. Fratrias Órfãs. Disponível em: Geocities:
ZENI, Bruno. O negro drama do rap: entre a lei do cão e a lei da selva, fev.2004. Disponível em: Revista Scielo
RACIONAIS MC´s; AFRO-X. A vida é desafio. In: ______. Nada como um dia após o outro dia. São Paulo: Zâmbia, p.2002. 2 CDs. CD 1 (56min 02s), faixa 10 (7min 13s).
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