Capão Redondo: Berço da Rhythm and Poetry dos Racionais MC´s
“Universo, Galáxia, Via –Láctea, Sistema Solar, Planeta Terra, Continente Americano, América do Sul, Brasil, SP, São Paulo, Zona Sul, Santo Amaro, Capão Redondo...Bem-vindos ao fundo do mundo”
Esta é a localização do Capão Redondo dada pelo escritor Férrez no prefácio do seu livro Capão Pecado, uma narrativa que, embora não traga personagens reais, reflete com fidelidade o cotidiano do local, um bairro da Zona Sul paulistana onde os Racionais escreveram suas primeiras letras. Ainda como uma dupla, é verdade, mas muitas das letras feitas por Ice Blue e Mano Brown, vizinhos no Capão Redondo, se tornaram os primeiros sucessos dos Racionais MC´s.
Os quatro integrantes dos Racionais são os MC’s Mano Brown (Pedro Paulo Soares Pereira), Edi Rock (Advaldo Pereira Alves), Ice Blue (Paulo Eduardo Salvador) e o Dj KL Jay (Kléber Geraldo Lelis Simões). O nome do grupo faz alusão ao disco Tim Maia Racional (1975), uma das influências do grupo, outras referências são os cantores Cassiano, Hyldon, Wilson Simonal e Jorge Ben, que é homenageado com uma versão de Jorge da Capadócia no quarto disco do grupo, Sobrevivendo no Inferno.
No início dos anos 90, os Racionais lançam seu primeiro trabalho Holocausto Urbano. O álbum era um reflexo de todos os problemas que moradores da periferia sofriam, inclusive os próprios integrantes, uma vez que todos eram oriundos de zonas pobres da cidade de São Paulo. As músicas traziam temas polêmicos como racismo, miséria, corrupção policial, entre outros problemas da periferia paulistana. Não menos importante foi a atitude pioneira do grupo de realizar um trabalho independente, tanto na sua produção como na divulgação, distanciando-se da indústria fonográfica.
Os Racionais fazem parte da geração que encontrou na praça Roosevelt, em São Paulo, o espaço para divulgação de seu trabalho e para o encontro com outros rappers da cidade. Essa experiência na praça foi crucial para a consolidação do rap como veículo de protesto. O segundo trabalho do grupo, o single Escolha seu Caminho, traz na temática a preocupação sócio-racial desenvolvida nos encontros na praça. O single possuía duas músicas Negro Limitado e Voz Ativa. Escolha seu Caminho foi responsável pela popularização dos Racionais entre os jovens da periferia de praticamente todo o país .
Raio-X do Brasil foi o nome escolhido para o terceiro trabalho dos Racionais, o álbum mostra a evolução do grupo, tecnológica e lírica. Na parte sonora, o Dj KL Jay sampleia e mistura sons de Tim Maia, Jorge Ben Jor, Curtis Mayfild e The Meters, entre outros artistas do funk e do soul antigos. Quanto às letras o grupo desprende-se das letras formais dos trabalhos anteriores, quase didáticas e passam a usar a linguagem da periferia com suas gírias, palavrões e idiomatismos, gerando uma maior identificação com o público alvo: os moradores da periferia. As músicas de maior destaque nesse álbum foram Fim-de-semana no Parque, Mano na Porta do Bar e o hino dos negros, pobres, presidiários, e os demais excluídos da sociedade-Homem na Estrada-, que chegou a ser declamada pelo então senador Eduardo Suplicy em um discurso seu, após jovens da classe média de Brasília serem absolvidos do caso do assassinato do índio pataxó.
Em 1997, após um período de pouca repercussão do Rap nos meios de comunicação, os Racionais produzem e divulgam seu quarto trabalho e, talvez o de maior valor para o grupo e para todo o cenário do rap brasileiro. Sobrevivendo no Inferno representou a consolidação do rap nacional, e elevou o gênero à condição de fenômeno nacional, embora, a independência em relação à indústria tenha sido mantida, uma vez que esse álbum inaugura o selo próprio do grupo- Cosa Nostra.. O álbum possui referências divididas entre a religião e a violência, entre a cruz e a pistola. Mano Brown define esse disco em entrevista ao jornalista da Caros Amigos Sérgio Kalili
"Eu quis fazer uma comparação de um cotidiano violento e da religião. Tipo o que você faz para ter mais segurança? A palavra da Bíblia? Como você vai sobreviver?Às vezes eu vejo os Racionais no meio de um inferno, cercado de uma pá de coisas- é tráfico de um lado, polícia que quer ferrar a gente de outro...Então é como um desabafo de como você faz para sobreviver no meio disso tudo aí."
A música de maior repercussão foi Diário de um Detento escrita por Brown e Jocenir, preso que sobreviveu ao massacre do Carandiru. A letra é ambientada na época do massacre e transmiti a visão “dos perdedores”, além de descrever o cotidiano de um presidiário no Complexo Carcerário do Carandiru. O clipe dessa música rendeu o prêmio de “Melhor Clipe do Ano” do VMB, festival de música brasileira realizado pela MTV.
O mais recente álbum dos Racionais, Nada como um dia após o outro dia, apresenta músicas que abordam a nova situação dos integrantes do grupo, agora reconhecidos em todo o país e considerados um dos grupos de maior expressão dentro do movimento hip hop. O posto de “famosos” acarreta vários problemas como a inveja, desconfiança acerca da simplicidade dos integrantes, a ingratidão de algumas pessoas próximas, sedução da indústria cultural, a aproximação de pessoas “interesseiras”, e todas essas preocupações são refletidas nesse trabalho. O CD é duplo e traz na capa uma sugestão do preço pelo qual deve ser vendido, uma atitude que, talvez, queira evitar a exploração do mercado fonográfico e explicitar mais uma vez a distância, tão prezada pelo grupo, do sistema empreendido pela indústria cultural.
A importância dos Racionais no cenário do rap nacional é algo indubitável, a sua trajetória confunde-se com a própria evolução do estilo dentro dos ideais do hip hop. Como explicita o jornalista Bruno Zeni
"Os Racionais se tornaram um fenômeno específico por alcançar enorme popularidade tanto na periferia como na classe média intelectualizada sem abrir mão de um discurso combativo que, não raro, beira o incentivo ao enfrentamento racial e de classe."
Eles representam, assim, a resistência do rap nacional na relação com a indústria cultural, ao mesmo tempo que são um dos grandes responsáveis pela ascensão do estilo em meio ao turbilhão do comércio fonográfico.
A escolha de parte da obra dos Racionais com objeto dessa pesquisa justifica-se, por fim, em todos esses pontos apresentados, desde da repercussão nacional do grupo até a postura assumida por seus integrantes desde o início, que eles procuram manter na sua essência, no entanto, sem negar a responsabilidade e a importância que possuem na cultura hip hop, tanto na vertente artística como na mobilização social. Algo que se reflete em todas as classes sociais
"A música dos Racionais está trazendo algo que o movimento negro nunca conseguiu: a comunicação de massa para massa. Suas músicas e suas roupas são cantadas e usadas por jovens negros pobres da periferia, jovens negros da classe média, jovens mestiços de todas as classes e jovens brancos do jardim."
Notas
FERRÉZ. Capão Pecado. São Paulo: Labortexto Editorial, 2000.p. 14
Embora o grupo Racionais MC’s faça parte da segunda geração, os seus integrantes participaram das primeiras manifestações do Hip Hop nacional na praça Roosevelt e na estação São Bento, de maneira individual e não como um grupo formado.
KALILI,Sérgio. Uma conversa com Mano Brown. Caros Amigos.São Paulo, n.3, set.1998. Edição Especial. p. 18.
ZENI, Bruno. O negro drama do rap: entre a lei do cão e a lei da selva, fev.2004. Disponível em: Revista Scielo
NOVAES, Regina. Hip-hop: o que há de novo.Proposta: Revista Trimestral de Debate da FASE. Rio de Janeiro: FASE (Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional), n.90,nov.2001.p.66-83. p.69
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